POEMA SOBRE A GUERRA
ONDE SE ESCREVE PAZ
Convoca as bordadeiras, os tecelões e os ourives
e diz-lhes que não haverá mais bodas
até que volte a pronunciar-se de novo a palavra paz
nos mercados, nas veredas, nas alcovas, nos portais.
Ainda ontem uma mãe sepultou dois filhos
no lugar onde antes era luminosa a flor do riso,
a corola branca dos amores sem mácula.
Depois todos se calaram e vieram as lágrimas,
as súplicas, as unhas cravadas na carne ferida.
E foi a raiva, e foi a dor sem nome, a miséria da alma.
É assim a guerra, disseram. E mais não souberam dizer.
E foram os pais despedir-se dos filhos na neblina dos cais.
Quando se voltava era sempre com um pedaço de vida
a menos, com uma cratera aberta no lugar da voz,
com uma chaga viva no vazio do coração.
Depois vieram os cães e as aves soturnas e negras,
as larvas, os ossos crucificados nos ramos ardidos,
os nomes dos filhos, dos pais, dos irmãos
gravados na pedra exausta de tanta morte.
Sempre foi e será assim a guerra, sentenciavam.
Mas havia meninos que ganhavam asas sobre os escombros
e levitavam como palavras do princípio de tudo
sobre os campos das batalhas que nunca ninguém venceu.
E vieram com eles as borboletas, os duendes e os adivinhos
e desenharam na terra o rosto imaculado da paz
e na areia fina o mapa das viagens em direcção à luz.
E com eles regressaram as bordadeiras, os tecelões e os ourives,
e as casas voltaram a ter o odor dos frutos e da alfazema,
o rumor cantante das fontes e das núpcias.
E foi assim a paz, laboriosa como uma mãe altiva.
Ainda ontem uma mãe assim deu à luz dois filhos
com os nomes dos que outra mãe um dia ali sepultara.
E foi assim a paz, como um rio lavando o ventre da terra.
Agora podes adormecer tranquila, mãe, porque os canhões
encheram a boca de vento e morreram sufocados
como carrascos cegos pelo lume do remorso
e deixaram que deles se soltasse uma música antiga,
capaz de fazer das espadas dos heróis
as guitarras que adoçam a alma eterna e livre das manhãs.
José Jorge Letria (Janeiro de 2007)
POEMA SOBRE A LIBERDADE
PARA QUE TU, LIBERDADE
Cresci a sonhar contigo, tu sabes,
com a pressa ansiosa dos amantes,
todo os dias, sem descanso ou desalento,
imginando a claridade do teu olhar sereno,
o rumor da tua voz marinha,
o embalo de onda do teu sono de menina.
Um dia chegaste e ergueste a tua casa
na mansa vizinhança dos meus sonhos,
paredes meias com o esplendor dos cravos.
Partilhei contigo o alpendre das estrelas
onde os meus filhos brincaram e cresceram,
onde eu brinquei com os búzios e as sombras
e te prometi fidelidade eterna,
como no fogo das paixões maiores.
Ambos envelhecemos desde então,
dorso arqueado pelo peso
do mais amargo desencanto,
sem renunciarmos à felicidade
que um dia prometemos um ao outro.
Fomos nós que envelhecemos
ou foi a alegria que se exilou do nosso olhar ?
Foi Abril que perdeu o fulgor primordial
ou fomos nós que deixámos de o merecer,
luz fugidia a escapar por entre os dedos ?
Amanhã acordarás numa cama de pétalas,
imitando a límpida música das fontes,
e eu estarei contigo, como quem renasce,
para que tu, Liberdade, não morras nunca
de tristeza ou abandono nos meus sonhos.
José Jorge Letria (Janeiro de 2004)